Câmara aprovou urgência de proposta que prevê demarcação apenas de terras já ocupadas por indígenas até promulgação da Constituição de 1988; STF também discute tema, que divide ruralistas e indígenas.
A Câmara dos Deputados aprovou, na última quarta-feira (25), tramitação em regime de urgência para uma proposta que prevê a aplicação do marco temporal na demarcação de terras indígenas. O projeto afirma que só podem ser reservadas terras que já eram tradicionalmente ocupadas por povos indígenas no dia da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988.
Com a aprovação do regime de urgência, o texto pode ser votado diretamente em plenário na Câmara. É possível que isso ocorra nesta terça (30). Se aprovado, segue para análise do Senado e, caso também tenha o aval da Casa, continua para a sanção presidencial. O presidente Lula pode sancionar ou vetar o texto.
Além da discussão no Congresso, o marco temporal para demarcação das terras indígenas também está em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF). A Corte avalia uma ação envolvendo uma terra indígena em Santa Catarina, mas a decisão terá repercussão em todos os processos do tipo no país.
De forma geral, tanto o texto que tramita na Câmara dos Deputados quanto a ação no STF tratam da aplicação de um marco temporal para a demarcação de terras indígenas. Ou seja, afirma que os povos originários só têm direito às terras que já eram tradicionalmente ocupadas por eles no dia da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988.
Na prática, a tese permite que indígenas sejam expulsos de terras que ocupam, caso não se comprove que estavam lá antes de 1988, e sem consideração sobre os povos que já foram expulsos ou forçados a saírem de seus locais de origem.
Processos de demarcação de terras indígenas históricos, que se arrastam por anos, poderão ser suspensos.
O marco temporal também irá facilitar que áreas que não deveriam ter titularidade, por pertencerem aos indígenas, protegendo física e culturalmente povos originários, possam ser privatizadas e comercializadas.
A comercialização responde ao interesse do setor ruralista, favorável à aplicação da tese. Os proprietários rurais também argumentam que há necessidade de garantir segurança jurídica ao grupo, e apontam o risco de desapropriações.
A projeto de lei sobre o tema em análise na Câmara dos Deputados é o PL nº 490/2007. O texto afirma que a interrupção da posse indígena ocorrida antes do marco temporal, independentemente da causa, inviabiliza o reconhecimento da área como tradicionalmente ocupada. A exceção é para caso de conflito de posse no período.
O projeto também:
- proíbe a ampliação de terras indígenas já demarcadas.
- flexibiliza o uso exclusivo de terras pelas comunidades e permite à União retomar áreas reservadas em caso de alterações de traços culturais da comunidade;
- permite contrato de cooperação entre índios e não índios para atividades econômicas;
- possibilita contato com povos isolados “para intermediar ação estatal de utilidade pública”.
A urgência na tramitação do projeto foi aprovada com 324 votos a favor, 131 contrários e uma abstenção. A medida permite a votação do texto diretamente no plenário, sem passar pelas comissões temáticas da Câmara e, na prática, acelera o trâmite.
A federação que inclui PT, PC do B e PV orientou o voto contrário ao projeto, mas o deputado Rubens Junior (PT-MA), falando como líder do governo, liberou a bancada para votar como preferisse. “O governo nesse caso vai liberar a matéria em relação a urgência e depois a gente aprecia no mérito”.
Com a tramitação em urgência, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) disse que vai pautar a votação do mérito do texto para o dia 30 de maio. Se o texto for aprovado pelos deputados, segue para análise do Senado.
Já no STF, os ministros analisam o tema a partir de uma ação envolvendo uma terra indígena em Santa Catarina.
Em 2013, a Justiça Federal no estado aplicou a tese do marco temporal ao conceder ao Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina a reintegração de posse de uma área que é parte da Reserva Biológica do Sassafrás, onde fica a Terra Indígena Ibirama LaKlãnõ. Na região, vivem os povos xokleng, guarani e kaingang.
A decisão mantinha entendimento de 2009, de outra decisão da Justiça Federal em Santa Catarina. A Fundação Nacional do Índio (Funai) apresentou um recurso ao STF, questionando a determinação. E é esse o pedido analisado pela Corte.
A Funai afirma que a aplicação do marco temporal fere a Constituição, especificamente o artigo 231, que trata da proteção aos povos indígenas. Para a fundação, o direito de posse daquele que consta como proprietário no registro de imóveis não pode prevalecer em detrimento do direito originário dos índios.
O julgamento do tema no STF começou em agosto de 2021. O relator da ação, ministro Edson Fachin, entendeu que o marco temporal não deve ser aplicado.
O ministro argumentou que a tese desconsidera a classificação dos direitos indígenas como fundamentais, ou seja, cláusulas pétreas que não podem ser suprimidas por emendas à Constituição.
Segundo a votar, o ministro Nunes Marques divergiu e se manifestou pela aplicação do marco temporal. Em seguida, o julgamento foi suspendo por pedido de vista – mais tempo para análise – do ministro Alexandre de Moraes.
A presidente do STF, ministra Rosa Weber, disse que o julgamento será retomado no dia 7 de junho. A análise tem repercussão geral, ou seja, o que for decidido pelos ministros da Corte criará um entendimento que poderá ser aplicado em situações semelhantes em todo o Brasil.
▶️ Qual a relação entre as possíveis decisões do Congresso e do STF?
A votação da urgência do texto na Câmara foi uma reação da Casa ao anúncio de que o marco temporal voltará a ser analisado pelo STF em 7 de junho.
Para se antecipar a uma decisão da Corte, o presidente da Câmara, Arthur Lira, prometeu à bancada ruralista colocar em plenário a votação do projeto, para que os parlamentares se pronunciem sobre o assunto.
Se a proposta passar pela Câmara, pelo Senado, e for sancionada pelo presidente Lula, se torna lei após publicação no “Diário Oficial da União”.
No entanto, se o STF tiver um entendimento oposto à aplicação do marco temporal na ação em análise, existe abertura para que a possível lei também seja questionada junto à Corte. Se provocado, o Supremo pode analisar se o texto é constitucional ou não.
▶️ Qual foi a repercussão da votação na Câmara?
Após a aprovação da urgência pela Câmara, a Ministra dos Povos Indígenas (MPI), Sonia Guajajara, disse em uma rede social que o marco temporal é um “genocídio legislado”.
“O Marco Temporal é um genocídio legislado. Uma teoria que inverte toda história do Brasil. Um projeto de lei que atenta contra constituição brasileira. Um atentado ao direito dos povos Indígenas. Um ataque a nossa maior possibilidade de enfrentamento da crise climática, as TI’s”, disse ela.
A deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) reclamou da votação da urgência de forma sumária na sessão desta quarta.
“Essa pauta não é uma pauta que coloca nenhum privilégio aos povos indígenas. Ela pode trazer gravíssimos retrocessos a direitos já conquistados e outros que estão por serem conquistados por povos historicamente discriminados nesse país”, acrescentou a deputada.
Já o deputado Arthur Maia (União-BA), relator da matéria, disse que a proposta é um dos mais importantes temas para o Brasil e o parlamento.
“É inaceitável que ainda prevaleça insegurança jurídica, que pessoas de má fé se utilizem de autodeclarações de indígenas para tomar de maneira espúria a propriedade alheia, constituída, na forma da lei, e de acordo com a Constituição.”